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Em busca da Terra de Ninguém

No romance O cavaleiro da terra de ninguém o escritor Sinval Medina reconstrói a trajetória do português Cristóvão Pereira de Abreu, sertanista e comerciante que abriu o primeiro caminho terrestre ligando o Uruguai a São Paulo. No distante século 18, havia uma extensa e despovoada faixa do território brasileiro que começava na Colônia do Sacramento, hoje Uruguai, e chegava até os campos da Vila de Santo Antônio dos Anjos de Laguna, ou apenas Laguna, como chamamos hoje. Nesta vasta e solitária paisagem, viviam “sem lei nem rei” minuanos, tapes, jesuítas, castelhanos, buenairenses e outros tipos erráticos, todos disputando um pedaço desta vasta, rica e desabitada parte do Brasil, chamada muito apropriadamente de Terra de Ninguém. Este foi o cenário escolhido pelo escritor Sinval Medina para contar as aventuras do cavaleiro português Cristóvão Pereira de Abreu, que ficou conhecido como Rei dos Tropeiros, e que encarou o desafio de abrir um caminho por terra ligando as barrancas orientais
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Perfume numa página de Proust

Há certos livros  que nos acompanham durante anos em releituras sucessivas. Por quase uma década, Em busca do tempo perdido , de Marcel Proust, foi meu livro de cabeceira. Naquela época, nos anos oitenta, carregava sempre comigo um dos sete volumes da Busca . Certa vez, durante uma viagem, um vidro de perfume que trazia na mala quebrou, molhando o exemplar de Proust. Quando abri minha bagagem no hotel, as páginas de À sombra da raparigas em flor , o segundo volume da série, na bela tradução de Mario Quintana, exalavam o perfume derramado. As folhas de Proust secaram e os anos passaram, mas até hoje quando abro aquele exemplar o suave perfume me transporta de imediato para aquele quarto de hotel. As circunstâncias e o motivo da viagem desapareceram da memória, mas o cenário do hotel, aquele insignificante momento, em que nada de especial acontecera, está até hoje vívido na lembrança. Trata-se apenas de uma cena, ativada pelo toque daquelas páginas até hoje manchadas de perfume. É
Um documentário conservador O filme começa com imagens de maio de 68 na França. Em seguida, vemos cenas de uma família e amigos em viagem a China de Mao. É a família do narrador, na voz de uma mulher. Voz grave, pausada, buscando verossimilhança. E assim seguirá a economia narrativa de "No intenso agora", documentário de João Moreira Salles. A revolução cultural de Mao Tse Tung na China surge em  contraponto a revolta estudantil de maio de 68 na França. Fica a impressão de que a primeira venceu, a segunda terminou em farsa, acordo com os patrões. Na China, porém, todos são iguais. Não há espaço para a liberdade individual, pois a liberdade diferencia. E numa sociedade de iguais não pode haver diferença. Lá pelas tantas, ouvimos do narrador: " A maior propaganda anti-comunista é a tristeza de Berlim oriental". Conheci essa tristeza, ou o que restou dela, em 2015, quando percorri a Karl Marx Allee, na antiga Berlim oriental. Tristeza do vazio das gr

Ele ainda está por aqui? Só aqui?

O ator Oliver Masucci no papel de Hitler (Fonte: Zeit online) Escrevo na manhã do dia de meu retorno para o Brasil. Quando se viaja para trabalhar, como é o caso, pouco tempo sobra para turismo. Procurei fazer isso naturalmente, como complemento da rotina de trabalho que mantive nesses vinte dias em Munique. Andei pelas ruas, usei metrô, trem e ônibus. Só faltou andar de bicicleta, mas isso estava além das minhas forças. Aliás, ver os idosos pedalando, indo ou voltando do mercado, humilha aqueles que, como eu, encaram a bicicleta como coisa de jovem, de estudante. Aqui a lógica é outra. A Alemanha vive momento político delicado com a entrada de refugiados sírios e turcos. Uma política de Estado que resulta de um gesto político louvável e inteligente de Angela Merkel. Até o final deste ano, a Alemanha deve receber cerca de 800 mil imigrantes. Não é pouca gente. A medida tem uma dimensão humanitária, mas também pragmática: o país tem necessidade de acolher gente disposta a traba

Manhã de outono em Moosach

Agora que o trabalho ganha ritmo e rende seus primeiros frutos, permito-me cuidar um pouco da saúde (quando inverterei essa ordem?). Na primeira semana aqui isso não foi possível: é sempre a mais difícil numa viagem de pesquisa, pois temos que abrir trilhas na mata, buscar caminhos, refazer as rotas. Desde o início desta semana, aproveito as manhãs e, após o café, sigo a “recomendação” de minha cardiologista e saio para caminhar nas redondezas. A Dachauer Strasse, por onde passo, é uma larga e arborizada avenida, com calçadas planas e espaço para os ciclistas. É uma das artérias que liga a região central da cidade aos bairros mais ao norte, como Moosach, onde estou. O outono chegou com força, encobrindo o céu com espessas e cinzas nuvens e mandando o Sol embora.  Mesmo assim, essas caminhadas matinais antes do trabalho são vitais para organizar as ideias, planejar o dia, observar a cultura local e viver um pouco do cotidiano dessa cidade, que encanta e impressiona por tratar bem

Pesquisando em Munique

Sala de leitura da Biblioteca Estadual da Baviera, em Munique Escrevo para partilhar com vocês um pouco de minha experiência de pesquisa aqui em Munique. A  estrutura da Bayerische Staatsbibliothek (Biblioteca estadual da Baviera) é impressionante. O acervo é de 10 milhões de volumes. Muda definitivamente o nosso conceito de biblioteca. Para ter acesso, basta registrar-se. Depois, consulta o catálogo e pede os livros nos terminais de computador ou de casa e, no dia seguinte, os livros estão num a estante específica pra você, identificada pelo seu número (vejam a foto). Durante 30 dias, você pode ficar com os livros, trabalhar na sala de leitura e devolver à sua estante até o dia seguinte. Para cópias, nada de papel. Tudo em pdf. Quando me vejo percorrendo os corredores da BSB, indo de um setor a outro, ou descendo para o café, penso que estar aqui dá sentido à carreira acadêmica que abracei há muitos. Lembro de vocês, que são a nova geração e que dizer-lhes que essa é a par

Preparativos de viagem

H oje viajo para Munique, na Alemanha. Ficarei poucos dias, e a viagem é de trabalho. Nem por isso deixo de imaginar uma viagem sem data pra voltar, daquelas em que vamos vivendo tão a fundo o cotidiano que chegamos ao absurdo de querer abandonar a língua materna e assumir em definitivo a condição ontológica de “out of place”, de estrangeiro. Se estivesse aqui, você não hesitaria em dizer: “vamos, este país não nos merece, esse tempo não é o nosso”.  Mas não é disso que quero falar. Ainda escuto sua voz me dizendo: “você precisa ir a Munique para colocar um ponto final nessa pesquisa”. Só você sabe o que isso significa. H oje vou atravessar o Atlântico para cumprir esse objetivo. Mas, no fundo, embarco nesse vôo com um sonho bom: na madrugada de segunda-feira, quando estiver a 10 mil metros de altura, vou olhar pela janela a imensidão escura que nos torna tão pequenos, fitar uma estrela e pensar que estou mais perto de você. Então vou adormecer e você estará nos meus sonhos, c